quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

LATIN AMERICAN HORROR STORY




Não consigo apagar aquela imagem abominável da minha memória. Por que parei para ver aquilo? Por que dei ouvidos praqueles alunos quando disseram que queriam me mostrar um vídeo? Devia saber que daquelas figuras ali coisa boa não viria. Mas é aquela maldita curiosidade que não conseguimos evitar.
Atualmente, o esquartejamento de pessoas e a posterior distribuição dos seus pedaços pela cidade virou moda dentro do contexto da guerra do tráfico na minha cidade, coisa que eu só ouvia falar de traficantes mexicanos e colombianos. Mas estamos na era da globalização, não é mesmo? E porque nossos traficantes não estariam conectados com esses novos tempos? Não basta praticar o horror e manter ele em segredo, tem que gravá-lo e espalhá-lo pela internet, para o deleite de todos. Quase todos amamos o que é macabro ou sórdido, damos audiência sem pensar para ele, é algo instintivo. Por que os alunos também não fariam o mesmo?
Mas o que me traumatizou não foi o vídeo em si. A imagem de um pobre infeliz desconhecido sendo desmembrado como uma galinha é algo aterrador, mas hoje em dia alguém ainda se impressiona com isso? Em plena era da informação, de “Brasil Urgente” e “Cidade Alerta”, do Estado Islâmico, da deep web?
Não, infelizmente não foi isso que me horrorizou.
É que eu reparei demais naquele corpo, que já era, na verdade, uma carcaça. Magrelo e jovem, exatamente como o dos meus alunos, que se amontoavam sobre aquele celular para acompanhar aquela ação. As mesmas caraterísticas, o mesmo moletom. Imaginava o rosto deles naquela carcaça. A cabeça de um deles sendo extirpada do tronco, isso me perturbou. Reparava nas mãos anônimas que apareciam no vídeo, segurando um facão que ia descendo sobre o pescoço daquela criatura infeliz, notei que não espirrava sangue, o qual já devia ter se esvaído antes por algum meio. Eram mãos jovens e negras, exatamente como as dos meus alunos, isso me perturbou mais. Em poucos segundos pensei em tudo isso, pensei também que aquilo não estava acontecendo longe da minha cidade, na distante Síria ou no Iraque. Reparei que o corpo era destroçado sobre uma calçada, um pouco de concreto, um pouco de laje de arenito rosa, como muitas sobre as quais eu mesmo ando. Em segundo plano, parecia ter um murinho, com reboco pela metade, como muitos perto da minha casa ou perto da minha escola. Isso me perturbou mais ainda. Percebi que aquele horror era tão próximo de mim e uma ânsia de vômito me subiu pela garganta, foi quando um dos guris que estavam ali, o Wendel (vou falar dele em outra oportunidade), notou a expressão aterrorizada da minha cara. Não consigo esquecer a maneira como aquele garoto começou a gargalhar ao se dar conta do meu pavor. Isso divertiu muito ele. Era uma risada igual a do Coringa, personagem que muitos deles carregam estampado em camisetas, moletons e tatuagens.
Aquilo foi a gota d'água para mim, me dei conta do que estava fazendo, permitindo que aquela barbárie fosse assistida na minha sala de aula. Aos gritos fiz eles desligarem e guardarem aquele celular, depois xinguei eles por uns dez minutos. E se fosse um parente deles? O que aprendem assistindo àquela coisa nojenta? Enfim, argumentos totalmente inúteis, respondidos com absoluto desdém. Até que fiquei exausto. Num misto de desesperança e nojo. E comecei a passar uma tarefa no quadro.
Decidi que jamais permitiria aquilo de novo na minha aula. Na minha pequena ditadura, o ser humano seria respeitado. Ali, as regiões e biomas brasileiros seriam mais interessantes do que a morbidez da vida real. Ali, a leitura de texto e os exercícios teriam mais apelo do que a tecnologia. Terei sucesso? Acho que a pergunta é outra: Alguém se importa com isso?

2 comentários:

  1. Vivo realidade semelhante. Não é fácil resistir e continuar tendo esperança e continuar acreditando na vida.
    Penso que não podemos sucumbir à violência. Autoritária ou não, a atitude de não permitir o escárnio em aula, dá um limite simbólico ao caos que estamos vivendo.

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    1. Com toda certeza, Leonice, se omitir é dar legitimidade pra certas atitudes.

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